29 de julho de 2010

Hiperlinguagem

Ao migrar do papel para telas e telinhas, palavras e frases sofrem uma metamorfose. Do casulo do texto emerge o hipertexto e a magnitude dessa transformação não deve ser subestimada. Hoje, textos produzidos exclusivamente para serem gravados em papel já nascem limitados. O escriba, ao permitir que sua obra seja confundida com o meio, tolhe seu potencial. Autores, jornalistas, editores e outros artesãos da escrita estão compelidos a reaprender seu ofício. Mas o desafio não precisa ser encarado com temor. Pelo contrário, as enormes possibilidades que se abrem deveriam nos estimular, provocar nosso espírito de descoberta e itensificar a aventura do saber.

Hipertexto é mais do que texto, mais do que a codificação de uma mensagem para ser transmitida e depois recebida num processo linear. O hipertexto vai além, permitindo a criação concomitante de associações não-lineares que transmitem ao leitor não só uma mensagem, mas a própria estrutura do pensamento ou emoção. No hipertexto, as fontes de informação, referência e inspiração acompanham o texto. Aliás, não deveríamos falar em hipertexto e, sim, em hipermídia pois as fontes não precisam se limitar a outros textos ou hipertextos podendo ser também imagens, animações, sons, gráficos, ilustrações ou outras representações audiovisuais. E, na medida em que essas fontes também estejam confecionadas como hipermídia, vêm junto também as fontes das fontes e assim por diante criando um complexo de interconexões que poderia ser caracterizado como uma espécie de consciência coletiva.


O primeiro e mais fundamental impacto dessa evolução é na relação com o leitor que, na verdade, deixa essa condição passiva para se tornar interaginte. Tal transformação exige que o autor abdique parte de seu controle sobre o escopo da mensagem em favor do consumidor que, cada vez mais, espera pilotar sua própria navegação pelo conteúdo. Esse interaginte pode optar por seguir a narrativa estabelecida ou seguir as referências para se aprofundar de acordo com sua vontade. E, na medida em que se acostumar a interagir dessa forma, criará a expectativa de fazê-lo com todos os conteúdos ou, pelo menos, com aqueles de gêneros nos quais esse tipo de interação faça sentido.

Ainda que um certo grau de temor e apreensão perante a tecnologia seja natural, o potencial que ela apresenta a autores e, em especial, a editores deveria ser recebido com alegria. Com a eliminação das amarras de espaço e tempo que restringiam o texto impresso, surge uma nova oportunidade para o editor agregar valor. Por meio da criação de vínculos (ou links) internos e externos ao texto – além dos criados pelo autor, é claro – o editor torna-se operador das conexões congnitivas entre o texto e a tal consciência coletiva. Cada link tem um ponto de partida, ou âncora, e um destino. Quanto mais âncoras relevantes e interessantes um hipertexto contém, mais útil ele se torna para os leitores-interagintes. E quanto mais útil, maior a probabilidade de se tornar o destino de links ancorados em outros hipertextos. Ou seja, nesse novo contexto, fazer boas referências torna-se sinônimo de ser uma boa referência.

Se repercussão é uma das principais medidas de qualidade e sucesso de um conteúdo, então tornar-se o destino do maior número de links possível passa a ser uma importante ação tática. A crescente quantidade e complexidade dos sistemas de conhecimento e entretenimento leva consumidores a confiarem cada vez mais nos critérios de seleção dos buscadores da web que, por sua vez, analisam o grau de interconexão dos conteúdos e o tomam como medida de relevância. Em outras palavras, autor e editor, enquanto operadores das conexões entre conteúdos, se tornam agentes de sua promoção e distribuição. Sim, distribuição também, pois o hipertexto não permite apenas o encaminhamento para outros destinos como também a incorporação do destino à própria âncora por meio de syndication. Preparar conteúdo para essa modalidade de micro-distribuição em rede é, assim, mais uma das novas e fascinantes funções do editor-marketeiro. Torna-se necessário e cada vez mais importante, portanto, que textos passem por múltiplas edições para serem preparados para syndication e outros canais de distribuição. Afinal, com a múltiplicação dos conteúdos e dos meios, é cada vez mais importante estar onde o consumidor está ao invés de esperar que ele venha até o seu canal.

Outra importante mudança é na atenção e tratamento dispensados a obras já publicadas. Quando se tornam destino e âncora de múltiplas referências, essas obras precisam ser mantidas, tanto para evitar que acumulem links quebrados – já que os conteúdos aos quais fazem referência podem sofrer alterações –, quanto para atualizá-las com referências a novos conteúdos produzidos após a publicação original que ampliam ou modificam conceitos elaborados no original e que podem, portanto, ser úteis ao leitor. Essa pós-edição pode, inclusive, levar à produção de novas versões que, por meio do controle de edições, se sobrepoem ao original sem, contudo, apagá-lo.

Estamos apenas no início da era da hipermídia e é certo que todas as possibilidades mencionadas aqui estão longe de exaurir o potencial dessa nova forma de comunicação. À medida em que cada vez mais produtores – tanto de conhecimento e entretenimento quanto de tecnologia da informação – se dedicarem à exploração do potencial dessa nova dimensão, é certo que veremos ainda mais novidades. 

Um comentário:

Ricardo Anderáos disse...

Hoje mesmo, durante minha sessão matinal de leitura gastroentestinal, eu estava pensando em transformar o excelente livro sobre meditação que lia em um formato de hipertexto para facilitar a leitura "por camadas" para vários amigos meus interessados pelo tema, mas pouco afeitos às porcas e parafusos da terminologia budista tibetana... E daí saltei para um raciocínio análogo ao seu: temos de re-aprender a escrever, tirando, de saída, partido das possibilidades da hipermídia. Creio que essa mudança vai demorar algumas gerações para se processar...